Esta semana (precisamente, ontem), recordamos o 42º aniversário de morte do poeta pernambucano Manuel Bandeira (a quem, percebe-se, adoramos aqui no EV!). Diagnosticado ainda bem jovem com tubercolose (uma doença que, àquela época, matava), passou a viver uma vida em que a morte lhe espreitava na próxima esquina. A próxima esquina, porém, ainda estava muito além do que ele imaginava: morreu aos 82 anos de hemorragia gástrica, sem nenhum envolvimento com suas mazelas respiratórias. Ficou registrada, contudo, em sua poesia, um profundo sentimento de beira do abismo que só poderia ser dignamente projetado por alguém cujo pé sempre esteve na cova. Uma visão de mundo única que pode ser ilustrada por, entre outros grandes poemas, os dois que trago abaixo:
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire.
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca da Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d`água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
-Lá sou amigo do rei-
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Este último, de tão famigerado, merece até um comentário. Não sou eu que comento, porém. Na voz do próprio poeta foi dito o seguinte:
‘“Vou-me embora pra Pasárgada” foi o poema de mais longa gestação em toda minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. […] Esse nome de Pasárgada, que significa “campo dos persas”, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias […]. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora pra Pasárgada!”. Senti na redondilha a primeira célula de um poema […].’
Meu comentário, entretanto, faz-se necessário, senão para alguém, decerto para mim mesmo: Bandeira não morreu.
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